UMA BREVE HISTÓRIA DE UMA NOVA CIÊNCIA – GEOQUÍMICA: QUÍMICA OU
GEOLOGIA? PARTE IV
maio 27, 2013 · por Raphael Pietzsch · em Ciência e
educação, História da
ciência. Obtido em: https://raphaelpietzsch.wordpress.com/2013/05/27/uma-breve-historia-de-uma-nova-ciencia-geoquimica-quimica-ou-geologia-parte-iv/
A regra das fases, desenvolvida
por Josiah Willard Gibbs em 1875, lida com o número de fases que podem existir
quando um sistema está em equilíbrio sob condições específicas. A conhecida
expressão f = c + 2 – p representa a regra das fases de Gibbs. Ela determina
que, num sistema em que o número de fases é igual ao número de componentes mais
dois, é impossível variar a temperatura, a pressão ou a fração molar numa fase
em particular de qualquer dos componentes e ainda manter o sistema em
equilíbrio (zero graus de liberdade). A letra “f” da expressão corresponde aos
“graus de liberdade”, do inglês “degrees of freedom”; “c” corresponde aos
“componentes”, enquanto a letra “p” é para “phase”, isto é, “fase”. Se f for
igual a um, então qualquer uma (e apenas uma) das variáveis pode ser modificada
arbitrariamente e ainda assim o sistema permanecerá em equilíbrio. Se f for
igual a dois, então duas variáveis podem ser alteradas e assim por diante.
Deve-se destacar que o número dois que aparece na regra das fases se aplica
apenas a sistemas com duas variáveis, temperatura e pressão, em complemento à
variável composicional (fração molar).
Uma forma geológica da regra das
fases foi sugerida por Victor Moritz Goldschmidt em sua tese de Ph.D. em 1911,
intitulada Die Kontaktmetamorphose im Kristianiagebiet (O
metamorfismo de contato na área de Kristiania), pela Universidade de Oslo. Já
introduzido há duas postagens anteriores, V. M. Goldschmidt (1888-1947) foi um
químico suíço-norueguês, nascido em Zurique, considerado hoje como o fundador
da geoquímica moderna e da cristaloquímica, e desenvolvedor da classificação
dos elementos que leva o seu nome. Em sua tese ele mostrou que a maioria
das rochas está sujeita a uma grande faixa de variação de temperaturas e
pressões, e ainda assim certos agrupamentos de minerais são mais frequentemente
encontrados, aparentemente indicando sua formação em condições de equilíbrio.
Desse modo, devem existir ao menos dois graus de liberdade – variação na
temperatura e na pressão – para a maioria das rochas. Se f for
igual a dois, então p é igual a c, e se f é
maior do que dois, então p é menor do que c. Este
argumento se encontra sumarizado na regra das fases mineralógicas de
Goldschmidt, a qual diz que o número máximo de fases cristalinas (minerais) que
podem coexistir em equilíbrio estável numa rocha é igual ou menor do que o
número de componentes que a compõe. Embora esta forma da regra das fases seja
de pouca utilidade em estudos detalhados das rochas, ela explica porque a
maioria das rochas consiste de relativamente poucos minerais. Elas normalmente
contêm entre cinco e dez componentes principais, e sua formação foi governada
pela exigência de condições de equilíbrio.
Desse modo, Goldschmidt, influenciado por seu pai, Heinrich Jacob
Goldschmidt, o qual fora professor de físico-química nas universidades de
Amsterdam, Heidelberg e, finalmente, Kristiania (atualmente Oslo), aprofundou a
aplicação destes conceitos à geologia. No ano seguinte à obtenção do doutorado
de Goldschmidt, o físico alemão Max von Laue descobriu a difração de raios-X
por cristais, proporcionando, desta forma, um método para se determinar a
estrutura cristalina de um mineral e os raios dos íons que os compõem, o que
lhe rendeu o Prêmio Nobel da Física em 1914. A descoberta de von Laue, em
conjunto com os estudos dos físicos britânicos William Henry Bragg (pai) e
William Lawrence Bragg (filho), que receberam o Prêmio Nobel da Física no ano
seguinte, permitiu a determinação tanto dos arranjos atômicos e distâncias em
cristais como a análise da composição química dos materiais a partir dos
comprimentos de onda e intensidades dos raios-X difratados. Entre os anos de
1922 e 1926, Goldschmidt e seus colegas da Universidade de Oslo empregaram a
difração de raios-X para determinar a estrutura cristalina de muitos minerais.
A falta de matéria-prima para a economia norueguesa, que se tornou
evidente em torno do fim da I Grande Guerra, induziu o governo norueguês a
criar a Comissão de Matéria-Prima, associada a um laboratório subordinado, em
1917. Os trabalhos de campo de Goldschmidt, a respeito da gênese das rochas e
minerais nas Montanhas Caledonianas, ao sul da Noruega, conduzidos desde o ano
de 1912 até o ano de 1921, o levaram a ser apontado como presidente da comissão
e do laboratório. Suas observações, principalmente entre as áreas de Stavanger
e Trondhjem (hoje Trondheim), foram descritas numa série de cinco monografias,
sob o título Geologisch-petrographische Studien im Hochgebirge des
südlichen Norwegens (Estudos geológicos e petrográficos nas altas
montanhas do sul da Noruega), publicadas entre estes anos.
Goldschmidt despertou um interesse particular no estudo do grupo dos
lantanídeos que, durante aqueles anos, não eram atrativos para a maioria dos
químicos inorgânicos. A relação entre os tamanhos iônicos e sua associação em
minerais foi descoberta inicialmente durante as investigações de Goldschmidt a
respeito dos minerais de elementos de terras raras (ETR) e da estrutura
cristalina de seus sesquióxidos. Ele constatou que ocorria um decréscimo
regular nas dimensões do retículo de sesquióxidos constituídos destes
elementos, a partir do lantânio até o lutécio. Assim, Goldschmidt sugeriu
o nome “contração dos lantanídeos” para este comportamento, o qual é provocado
pelo número crescente de elétrons nas camadas inferiores que, por sua vez, são
atraídos pela carga positiva do núcleo atômico. Os elementos de terras raras
podiam não despertar muito o interesse de outros pesquisadores nas décadas
iniciais do século XX, mas hoje são essenciais constituintes de equipamentos
eletrônicos que agregam alta tecnologia, de modo que a busca pelas jazidas
minerais que os contêm é uma questão política e economicamente estratégica
globalmente.
No ano de 1922, Goldschmidt publicou um artigo onde empregou os termos que
se tornaram tão populares na literatura geoquímica, a fim de agrupar elementos
de forma qualitativa, segundo suas afinidades geoquímicas: siderófilos,
calcófilos, litófilos e atmófilos, para elementos ocorrendo, predominantemente,
associados ao ferro, aos sulfetos, aos silicatos e na atmosfera. Embora apenas
qualitativa e não possa ser utilizada para explicar muitos dos detalhes das
ocorrências e distribuição dos elementos na crosta da Terra, sua classificação
propicia uma hipótese útil a respeito do fracionamento primário da Terra e se
presta também como classificação de uso genérico bastante útil. Sua validade
geral é devida à similaridade na configuração dos elétrons dos vários grupos de
elementos. Elementos siderófilos são aqueles cujos elétrons de valência
(externos), sob certas condições químicas, não estão prontamente disponíveis
para combinação com outros elementos. Assim, muitos tendem a ocorrer na forma nativa.
Os elétrons de elementos litófilos e calcófilos estão normalmente disponíveis.
Entretanto, estes dois grupos têm propriedades diferentes (em função da
estrutura eletrônica), e os elementos calcófilos tendem a formar ligações
covalentes com o enxofre, enquanto que os elementos litófilos tendem a formar
mais frequentemente ligações iônicas com o oxigênio, com as principais exceções
sendo o silício, o fósforo e o boro, que formam fortes ligações covalentes com
este último. Há, evidentemente, mudanças gradativas nestas propriedades
eletrônicas de elemento para elemento; dessa maneira, alguns deles apresentam
uma tendência maior a pertencer a um grupo específico do que outros elementos.
Em 1929 Goldschmidt se mudou para a Universidade de Göttingen, atendendo a
um convite para assumir a cadeira de mineralogia e petrologia, onde estudou a
distribuição de elementos químicos utilizando um espectrógrafo óptico.
Göttingen era um importante centro de saber, com forte tradição nas ciências
naturais, onde, mesmo com as dificuldades econômicas no pós-guerra, floresciam
as pesquisas nas áreas de matemática, física, físico-química, entre outras. A
partir do conjunto de dados levantado, Goldschmidt deduziu que a composição
química dos minerais é determinada pelo atendimento aos requerimentos do
“empacotamento mais próximo” de íons. Além disso, a substituição de íons de um
elemento principal por íons de elementos traço depende da similaridade de seus
raios e cargas. Estas generalizações proporcionaram uma explicação racional
para a distribuição observada de elementos nos minerais da crosta terrestre.
Com a ascensão ao poder do Nacional Socialismo na Alemanha, Goldschmidt,
de origem judaica, se viu obrigado a deixar Göttingen de volta à Oslo em 1935.
Em 1937, ele publicou a nona parte do seu trabalho intitulado Geochemische
Verteilungsgesetze der Elemente (Lei da distribuição geoquímica dos
elementos), o estudo mais conciso e detalhado sobre a geoquímica dos elementos
menores escrita nos anos de 1930.
Goldschmidt foi, pela primeira vez, indicado ao Prêmio Nobel em Química no
ano de 1928, por seu antigo mentor Waldemar Christofer Brøgger, geólogo e
mineralogista norueguês, que enaltecia suas contribuições fundamentais para a
geoquímica e a cristaloquímica, e em particular enfatizava seu trabalho com os
elementos terras raras. No ano seguinte, ele foi indicado mais uma vez, pelo
químico alemão Walter Hieber, e novamente no ano de 1931, por Edwin Blanck,
Alfred Cohen, Max Planck, Adolf Deissmann e Arthur Kötz. Fritz Haber, químico alemão
recipiente do Nobel em química em 1918, o indicou outra vez no ano de 1933 e,
novamente, em 1934 (juntamente com Gilbert Newton Lewis). Otto Ruff, outro
químico alemão, o indicou para o prêmio de 1935. Os nomeadores alemães
aparentemente tinham ciência de que Goldschmidt, um professor de mineralogia,
poderia não se qualificar para um prêmio em química, mas argumentavam que seu
trabalho era altamente importante também a partir da perspectiva da química
inorgânica. De acordo com Hieber, “as contribuições de Goldschmidt para a
geoquímica eram comparáveis à moderna direção na bioquímica, em que
proeminentes porta-vozes durante os últimos anos foram premiados com o Nobel”.
Se bioquímicos podiam ser laureados com o prêmio Nobel, por que não
geoquímicos? Em 1934 o Comitê Nobel para a química preparou um relatório
especial sobre Goldschmidt. O perito sueco, Arne Westgren, concluiu que o
trabalho geoquímico de Goldschmidt era “primariamente de interesse geológico” e
“apenas secundariamente de interesse químico”. Embora Westgren tenha
reconhecido que as contribuições de Goldschmidt para a cristaloquímica fossem
importantes, elas não haviam resultado em qualquer grande descoberta e,
consequentemente, recomendou não nomeá-lo ao prêmio. Assim, infelizmente,
apesar de todas as indicações, Goldschmidt não recebeu a honra de ser agraciado
com o Nobel em química. No entanto, a relevância de seu trabalho nas áreas da
geoquímica, química e geologia permanece devidamente reconhecida entre os seus
praticantes na atualidade. Em sua homenagem, uma das maiores conferências
internacionais de geoquímica leva seu nome, assim como o prêmio concedido
àqueles que exercem alguma contribuição extremamente significativa a esta
disciplina.
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