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quinta-feira, 6 de setembro de 2018

GEOQUÍMICA: QUÍMICA OU GEOLOGIA?


UMA BREVE HISTÓRIA DE UMA NOVA CIÊNCIA – GEOQUÍMICA: QUÍMICA OU GEOLOGIA? PARTE IV

A regra das fases, desenvolvida por Josiah Willard Gibbs em 1875, lida com o número de fases que podem existir quando um sistema está em equilíbrio sob condições específicas. A conhecida expressão f = c + 2 – p representa a regra das fases de Gibbs. Ela determina que, num sistema em que o número de fases é igual ao número de componentes mais dois, é impossível variar a temperatura, a pressão ou a fração molar numa fase em particular de qualquer dos componentes e ainda manter o sistema em equilíbrio (zero graus de liberdade). A letra “f” da expressão corresponde aos “graus de liberdade”, do inglês “degrees of freedom”; “c” corresponde aos “componentes”, enquanto a letra “p” é para “phase”, isto é, “fase”. Se f for igual a um, então qualquer uma (e apenas uma) das variáveis pode ser modificada arbitrariamente e ainda assim o sistema permanecerá em equilíbrio. Se f for igual a dois, então duas variáveis podem ser alteradas e assim por diante. Deve-se destacar que o número dois que aparece na regra das fases se aplica apenas a sistemas com duas variáveis, temperatura e pressão, em complemento à variável composicional (fração molar).
Uma forma geológica da regra das fases foi sugerida por Victor Moritz Goldschmidt em sua tese de Ph.D. em 1911, intitulada Die Kontaktmetamorphose im Kristianiagebiet (O metamorfismo de contato na área de Kristiania), pela Universidade de Oslo. Já introduzido há duas postagens anteriores, V. M. Goldschmidt (1888-1947) foi um químico suíço-norueguês, nascido em Zurique, considerado hoje como o fundador da geoquímica moderna e da cristaloquímica, e desenvolvedor da classificação dos elementos que leva o seu nome. Em sua tese ele mostrou que a maioria das rochas está sujeita a uma grande faixa de variação de temperaturas e pressões, e ainda assim certos agrupamentos de minerais são mais frequentemente encontrados, aparentemente indicando sua formação em condições de equilíbrio. Desse modo, devem existir ao menos dois graus de liberdade – variação na temperatura e na pressão – para a maioria das rochas. Se f for igual a dois, então p é igual a c, e se f é maior do que dois, então p é menor do que c. Este argumento se encontra sumarizado na regra das fases mineralógicas de Goldschmidt, a qual diz que o número máximo de fases cristalinas (minerais) que podem coexistir em equilíbrio estável numa rocha é igual ou menor do que o número de componentes que a compõe. Embora esta forma da regra das fases seja de pouca utilidade em estudos detalhados das rochas, ela explica porque a maioria das rochas consiste de relativamente poucos minerais. Elas normalmente contêm entre cinco e dez componentes principais, e sua formação foi governada pela exigência de condições de equilíbrio.
Desse modo, Goldschmidt, influenciado por seu pai, Heinrich Jacob Goldschmidt, o qual fora professor de físico-química nas universidades de Amsterdam, Heidelberg e, finalmente, Kristiania (atualmente Oslo), aprofundou a aplicação destes conceitos à geologia. No ano seguinte à obtenção do doutorado de Goldschmidt, o físico alemão Max von Laue descobriu a difração de raios-X por cristais, proporcionando, desta forma, um método para se determinar a estrutura cristalina de um mineral e os raios dos íons que os compõem, o que lhe rendeu o Prêmio Nobel da Física em 1914. A descoberta de von Laue, em conjunto com os estudos dos físicos britânicos William Henry Bragg (pai) e William Lawrence Bragg (filho), que receberam o Prêmio Nobel da Física no ano seguinte, permitiu a determinação tanto dos arranjos atômicos e distâncias em cristais como a análise da composição química dos materiais a partir dos comprimentos de onda e intensidades dos raios-X difratados. Entre os anos de 1922 e 1926, Goldschmidt e seus colegas da Universidade de Oslo empregaram a difração de raios-X para determinar a estrutura cristalina de muitos minerais.
A falta de matéria-prima para a economia norueguesa, que se tornou evidente em torno do fim da I Grande Guerra, induziu o governo norueguês a criar a Comissão de Matéria-Prima, associada a um laboratório subordinado, em 1917. Os trabalhos de campo de Goldschmidt, a respeito da gênese das rochas e minerais nas Montanhas Caledonianas, ao sul da Noruega, conduzidos desde o ano de 1912 até o ano de 1921, o levaram a ser apontado como presidente da comissão e do laboratório. Suas observações, principalmente entre as áreas de Stavanger e Trondhjem (hoje Trondheim), foram descritas numa série de cinco monografias, sob o título Geologisch-petrographische Studien im Hochgebirge des südlichen Norwegens (Estudos geológicos e petrográficos nas altas montanhas do sul da Noruega), publicadas entre estes anos.
Goldschmidt despertou um interesse particular no estudo do grupo dos lantanídeos que, durante aqueles anos, não eram atrativos para a maioria dos químicos inorgânicos. A relação entre os tamanhos iônicos e sua associação em minerais foi descoberta inicialmente durante as investigações de Goldschmidt a respeito dos minerais de elementos de terras raras (ETR) e da estrutura cristalina de seus sesquióxidos. Ele constatou que ocorria um decréscimo regular nas dimensões do retículo de sesquióxidos constituídos destes elementos, a partir do lantânio até o lutécio. Assim, Goldschmidt sugeriu o nome “contração dos lantanídeos” para este comportamento, o qual é provocado pelo número crescente de elétrons nas camadas inferiores que, por sua vez, são atraídos pela carga positiva do núcleo atômico. Os elementos de terras raras podiam não despertar muito o interesse de outros pesquisadores nas décadas iniciais do século XX, mas hoje são essenciais constituintes de equipamentos eletrônicos que agregam alta tecnologia, de modo que a busca pelas jazidas minerais que os contêm é uma questão política e economicamente estratégica globalmente.
No ano de 1922, Goldschmidt publicou um artigo onde empregou os termos que se tornaram tão populares na literatura geoquímica, a fim de agrupar elementos de forma qualitativa, segundo suas afinidades geoquímicas: siderófilos, calcófilos, litófilos e atmófilos, para elementos ocorrendo, predominantemente, associados ao ferro, aos sulfetos, aos silicatos e na atmosfera. Embora apenas qualitativa e não possa ser utilizada para explicar muitos dos detalhes das ocorrências e distribuição dos elementos na crosta da Terra, sua classificação propicia uma hipótese útil a respeito do fracionamento primário da Terra e se presta também como classificação de uso genérico bastante útil. Sua validade geral é devida à similaridade na configuração dos elétrons dos vários grupos de elementos. Elementos siderófilos são aqueles cujos elétrons de valência (externos), sob certas condições químicas, não estão prontamente disponíveis para combinação com outros elementos. Assim, muitos tendem a ocorrer na forma nativa. Os elétrons de elementos litófilos e calcófilos estão normalmente disponíveis. Entretanto, estes dois grupos têm propriedades diferentes (em função da estrutura eletrônica), e os elementos calcófilos tendem a formar ligações covalentes com o enxofre, enquanto que os elementos litófilos tendem a formar mais frequentemente ligações iônicas com o oxigênio, com as principais exceções sendo o silício, o fósforo e o boro, que formam fortes ligações covalentes com este último. Há, evidentemente, mudanças gradativas nestas propriedades eletrônicas de elemento para elemento; dessa maneira, alguns deles apresentam uma tendência maior a pertencer a um grupo específico do que outros elementos.
Em 1929 Goldschmidt se mudou para a Universidade de Göttingen, atendendo a um convite para assumir a cadeira de mineralogia e petrologia, onde estudou a distribuição de elementos químicos utilizando um espectrógrafo óptico. Göttingen era um importante centro de saber, com forte tradição nas ciências naturais, onde, mesmo com as dificuldades econômicas no pós-guerra, floresciam as pesquisas nas áreas de matemática, física, físico-química, entre outras. A partir do conjunto de dados levantado, Goldschmidt deduziu que a composição química dos minerais é determinada pelo atendimento aos requerimentos do “empacotamento mais próximo” de íons. Além disso, a substituição de íons de um elemento principal por íons de elementos traço depende da similaridade de seus raios e cargas. Estas generalizações proporcionaram uma explicação racional para a distribuição observada de elementos nos minerais da crosta terrestre.
Com a ascensão ao poder do Nacional Socialismo na Alemanha, Goldschmidt, de origem judaica, se viu obrigado a deixar Göttingen de volta à Oslo em 1935. Em 1937, ele publicou a nona parte do seu trabalho intitulado Geochemische Verteilungsgesetze der Elemente (Lei da distribuição geoquímica dos elementos), o estudo mais conciso e detalhado sobre a geoquímica dos elementos menores escrita nos anos de 1930.
Goldschmidt foi, pela primeira vez, indicado ao Prêmio Nobel em Química no ano de 1928, por seu antigo mentor Waldemar Christofer Brøgger, geólogo e mineralogista norueguês, que enaltecia suas contribuições fundamentais para a geoquímica e a cristaloquímica, e em particular enfatizava seu trabalho com os elementos terras raras. No ano seguinte, ele foi indicado mais uma vez, pelo químico alemão Walter Hieber, e novamente no ano de 1931, por Edwin Blanck, Alfred Cohen, Max Planck, Adolf Deissmann e Arthur Kötz. Fritz Haber, químico alemão recipiente do Nobel em química em 1918, o indicou outra vez no ano de 1933 e, novamente, em 1934 (juntamente com Gilbert Newton Lewis). Otto Ruff, outro químico alemão, o indicou para o prêmio de 1935. Os nomeadores alemães aparentemente tinham ciência de que Goldschmidt, um professor de mineralogia, poderia não se qualificar para um prêmio em química, mas argumentavam que seu trabalho era altamente importante também a partir da perspectiva da química inorgânica. De acordo com Hieber, “as contribuições de Goldschmidt para a geoquímica eram comparáveis à moderna direção na bioquímica, em que proeminentes porta-vozes durante os últimos anos foram premiados com o Nobel”. Se bioquímicos podiam ser laureados com o prêmio Nobel, por que não geoquímicos? Em 1934 o Comitê Nobel para a química preparou um relatório especial sobre Goldschmidt. O perito sueco, Arne Westgren, concluiu que o trabalho geoquímico de Goldschmidt era “primariamente de interesse geológico” e “apenas secundariamente de interesse químico”. Embora Westgren tenha reconhecido que as contribuições de Goldschmidt para a cristaloquímica fossem importantes, elas não haviam resultado em qualquer grande descoberta e, consequentemente, recomendou não nomeá-lo ao prêmio. Assim, infelizmente, apesar de todas as indicações, Goldschmidt não recebeu a honra de ser agraciado com o Nobel em química. No entanto, a relevância de seu trabalho nas áreas da geoquímica, química e geologia permanece devidamente reconhecida entre os seus praticantes na atualidade. Em sua homenagem, uma das maiores conferências internacionais de geoquímica leva seu nome, assim como o prêmio concedido àqueles que exercem alguma contribuição extremamente significativa a esta disciplina.

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